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Novas famílias

Pai soropositivo, filho negativo

Durante anos, ter filhos parecia ser um sonho fora do alcance de homens e mulheres contaminados pelo HIV ou casados com parceiros soropositivos. Antes que o coquetel antiretroviral tornasse a Aids uma condição controlável, a partir de 1996, a doença tinha um impacto brutal sobre a saúde e a expectativa de vida dos pacientes. Para muitos dos que foram surpreendidos pela síndrome, surgida no começo dos anos 1980, sobreviver foi uma necessidade mais urgente do que se reproduzir. Além disso, no caso de homens ou mulheres portadores do HIV, buscar um filho implica em expôr o parceiro e o bebê ao contágio pelo vírus. A chance de transmissão é real, embora nem sempre fácil de medir.

Como o esperma carrega uma carga viral maior do que a secreção vaginal, por ser mais líquido e mais volumoso, o homem tem uma chance maior de contaminar a parceira. Estatisticamente, um homem soropositivo contaminará a parceira em 23 de cada 1000 relações sexuais desprotegidas. Se o contato resultar em gestação, o embrião também pode ser contaminado.

As chances que uma mulher soropositiva têm de transmitir o vírus a um homem negativo são 50% menores do que seriam na situação oposta (homem positivo, mulher negativa). É na relação com o bebê que reside o maior problema da mãe soropositiva. Mesmo com o coquetel, sua chance de transmitir o HIV ao filho durante a gestação ou no parto ainda é de 5%.

Tratamento e reprodução assistida

As perspectivas reprodutivas dos soropositivos melhoraram significativamente com a evolução dos tratamentos para a Aids. Ao se provar capaz de reduzir a quantidade detectável de vírus nos pacientes, o coquetel de medicamentos desenvolvido pelo médico sino-americano David Ho foi fundamental no processo. O coquetel antiretroviral vem sendo usado com freqüência, por exemplo, nas pacientes que se descobrem soropositivas já na gestação. Estudos mostram que a terapia reduz em 66% a chance da grávida que tem o HIV de transmitir o vírus ao filho.

As técnicas de reprodução assistida também têm tido um papel importante na redução dos riscos implicados na reprodução de homens e mulheres soropositivos. Há quase duas décadas, técnicas que beneficiam casais inférteis vem sendo usadas para ajudar pacientes com o HIV a se reproduzirem sem transmitir o vírus aos filhos.

Em muitos países, autoridades de saúde e profissionais da área reprodutiva ainda resistem a estender os benefícios dos tratamentos de infertilidade às mulheres soropositivas. Para muitos, há um problema ético em promover a gestação por meio de um tratamento que não elimina totalmente o risco da contaminação. Ainda que se obtenha um embrião livre do vírus por fertilização in vitro, afirmam, o risco de que o bebê contraia o HIV da mãe ainda existe, mesmo reduzido pela medicação.

A solução italiana

Para os homens soropositivos que querem ter filhos com suas companheiras negativas, porém, a reprodução assistida tem sido de grande ajuda, e há bastante tempo. Quase dez anos antes do surgimento do coquetel de AZT, em 1989, o médico italiano Augusto Semprini, da universidade de Milão, começou a produzir excelentes resultados com uma técnica que consiste em lavar e centrifugar o esperma de pacientes soropositivos e, em seguida, colocá-lo em contato com os óvulos da parceira negativa por fertilização in vitro.

O tratamento se baseia na evidência de que, ao separar os espermatozóides do líquido seminal, o processo de lavagem/centrifugação do esperma reduz significativamente sua carga de HIV. Conseqüentemente, a chance de contágio diminui. Os resultados não apenas confirmam a tese, como superam a expectativa: utilizada cerca de 3.000 vezes no mundo todo até 2004, a técnica de Semprini não havia produzido um único caso de contaminação da mãe ou do bebê pelo vírus.

Apesar dos números extraordinários, o método ainda é objeto de controvérsia. Nos Estados Unidos, só muito recentemente começou a ser aceito e oferecido a casais discordantes, ainda que por poucas clínicas. Segundo seus críticos, o ponto fraco da técnica é que, apesar de eliminar a maior parte da carga viral do esperma (os vírus presentes no líquido seminal ou em glóbulos brancos infectados), ela não afeta os vírus que estiverem aderidos aos espermatozóides, ou mesmo dentro deles.

O risco não é desprezível, se considerarmos que o vírus, microscópico, pode estar aderido a um único espermatozóide, e que são necessários alguns milhões de gametas masculinos para completar um ciclo de inseminação intrauterina. O fato da ciência ainda não compreender com exatidão como o vírus da Aids se liga aos espermatozóides reforça as dúvidas sobre a segurança do método.

O que é swim up?

O processo de lavagem ou capacitação dos espermatozóides, que é usado em todos os tratamentos de reprodução assistida, tem como objetivo selecionar os gametas com maior capacidade de fecundação. No caso dos pacientes portadores de HIV, ele serve também para eliminar boa parte da carga viral contida no sêmen.

O processo tem variações mas é, basicamente, o mesmo. Depois de colhida, a amostra de sêmen é colocada em uma pipeta com meio de cultura (água com nutrientes como proteínas, vitaminas e aminoácidos, que ajudam a manter as células vivas fora do organismo) e centrifugado. Nesse processo, as células mortas vão à tona da cultura e são retiradas, enquanto as mais capacitadas ficam no fundo.

O processo é repetido e, ao fim, os espermatozóides que sobrevivem são colocados em novo meio de cultura e ficam por 30 minutos em uma estufa a 37ºC de temperatura, semelhante à do corpo humano. Ao fim do período, os espermatozóides com maior motilidade (e, portanto, capacidade de fertilização) terão nadado para o alto da pipeta, o que explica o nome do processo, swim up (ou nadar para cima).

Aspirados, esses gametas serão usados nas fertilizações in vitro. O processo mais tradicional consiste em colocar em contato, dentro de gotículas de cultura, óvulos e alguns milhares de espermatozóides. O método mais indicado nos casos em que o pai é soropositivo é o ICSI, ou injeção intracitoplasmática de espermatozóide. Com o ICSI, é possível fertilizar um óvulo usando um único espermatozóide, que é injetado dentro da célula feminina. 

Esperança para os soropositivos              

Tratados com o coquetel antiretroviral, cada vez mais portadores de HIV se  vêem diante da possibilidade de levar uma vida normal. O desejo da reprodução, neste contexto, surge com força renovada. Foi esse desejo que fez do método de Semprini um sucesso, apesar da margem de risco que ele, em tese, oferece. É esse desejo, também, que vem impulsionando o aperfeiçoamento da técnica: nos últimos anos, a lavagem do esperma passou a ser usada em associação com tratamentos mais avançados de reprodução assistida, como a fertilização in vitro, inclusive nos Estados Unidos.

Ainda que seja mais cara, a fertilização in vitro traz vantagens em relação à inseminação intrauterina: é mais segura para a mãe, que não precisa ter qualquer contato com o esperma do marido soropositivo ao longo do processo. Os riscos para mãe e bebê se reduzem mais ainda quando a fertilização é feita por ICSI, método em que um único espermatozóide é injetado no óvulo durante a fertilização. Na forma tradicional de fertilização no laboratório, os óvulos ficam em contato com alguns milhares de espermatozóides.

Para os homens soropositivos e suas parceiras, a reprodução assistida é a melhor chance de reprodução segura – ou seja, com o menor risco de contágio para a mulher e a criança. Por isso, embora seja impossível afirmar que a fertilização in vitro com lavagem de espermatozóides esteja 100% a salvo de provocar contágio, os resultados obtidos com os métodos acabaram por transformá-lo em uma opção viável, oferecida por centros de saúde e reprodução no Japão e na Europa e aprovada até pela American Society for Reproductive Medicine.

Quem pode fazer o tratamento? 

Algumas organizações não-governamentais brasileiras vêm brigando para incluir os tratamentos de reprodução que beneficiam casais HIV-discordantes no Serviço Único de Saúde. Por enquanto, o tratamento só está disponível em clínicas particulares. Quando um casal formado por um homem que é soropositivo e uma mulher que não tem o HIV se candidata ao tratamento com lavagem de esperma, a primeira providência do médico é requisitar uma pesquisa de carga viral no seu sangue.

O primeiro requisito para o tratamento é que a carga viral do sangue do candidato esteja negativa. Técnicas bastante sensíveis, baseadas na análise do DNA, medem a carga de HIV no sangue ou no esperma do portador. Quando os pacientes com HIV reagem bem ao tratamento com coquetel antiretroviral, a quantidade de vírus detectável no sangue e no esperma torna-se desprezível, ou negativa.

Quando a carga de HIV no sangue de um paciente é negativa, o esperma é coletado e passa pelo processo de lavagem e centrifugação que separa espermatozóides com boa mobilidade dos gametas menos aptos e do líquido seminal. A amostra obtida é então submetida à pesquisa de carga viral. No Brasil pouquíssimos laboratórios fazem esse exame. Se a carga viral for negativa, o casal recebe um sinal verde para se submeter à fertilização in vitro com ICSI.

Quando o tratamento é bem-sucedido, muitas clínicas recomendam que mãe e criança se submetam a um novo teste anti-HIV 12 meses depois do nascimento.

Texto retirado do livro escrito pela Dra. Silvana Chedid “Novas famílias”.

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